Entre as memórias enraizadas no corpo vem a imagem da pasta amarelada que as mulheres vendiam nos mercados de Dakar, Thies, Ouagadougou, Conacri… a textura, o cheiro, tudo vibrava. E não esqueço aquelas peles escuras e lustrosas. Odara.
Conhecida por suas múltiplas utilidades no terreno culinário, cosmético e medicinal, a manteiga de karité, riqueza presente nos modos de cuidado africanos e parte da história social e econômica local, tornou-se conhecida massivamente e consumida na indústria de beleza ao redor do mundo.
Nativa da África Ocidental e cultivada em diversas partes do continente , a manteiga é extraída do caroço da semente da árvore da karité. Sólida em temperaturas quentes esta gordura vegetal de alta qualidade é comestível, sendo utilizada na preparação de alimentos entre molhos , cozidos e confeitarias.
As técnicas de produção e colheita são transmitidas de geração a geração. Nas áreas rurais, as sementes passam por um processo de extração não mecanizado bastante trabalhoso que segue as seguintes etapas: Após serem extraídas do fruto e fervidas, secam ao sol ou no forno. A secagem ao sol pode levar de 5 a 10 dias. Em seguida as sementes são abertas usando-se pilão, pedras ou outros instrumentos, removendo-se os grãos que serão amassados até se transformarem em uma pasta densa. A pasta é colocada em água, aquecida ou fervida e a massa fervente é agitada até que uma gordura oleosa e cinzenta se separe da emulsão. Essa gordura pode sofrer refinamento adicional antes de ser moldada para embalagem.
CIFRAS E COISAS DE RAINHA
Celebrada como o “ouro das mulheres”, não apenas por sua coloração dourada (e que varia de região para região, em diversos tons de amarelo) mas por fornecer trabalho e renda a milhões de mulheres , a karité é também apreciada por suas propriedades nutrientes, anti-inflamatórias, antifúngicas, regeneradoras e fortalecedoras de tecidos. Não por acaso tem sido usada como ingrediente cosmético há séculos. Sua alta concentração de ácidos graxos, vitaminas A, E e F, entre outros elementos , ajuda-nos a compreender porque a manteiga é consumida para múltiplas finalidades em tantas comunidades no continente africano.
Apesar do uso frequente, os estudos científicos que comprovam as múltiplas atribuições da manteiga estão em desenvolvimento e muitas propriedades ainda não foram comprovadas pela ciência ocidental . Seu uso ao longo dos séculos, entretanto, torna-se fonte suficiente de credibilidade. Reza a lenda que Cleópatra encomendava jarras de manteiga de karité para seu uso pessoal. Há ainda referências de que a Rainha de Sabá, soberana do reino localizado na região sudoeste da Arábia pré- islâmica e Nefertiti, rainha da XVIII dinastia do antigo Egito, também eram adeptas da poderosa manteiga.
A utilização da karité no mercado cosmético e valorização no plano econômico são crescentes, atraindo a indústria européia, asiática e estadunidense. Multinacionais como Loreal, Body Shop e L’Occitane en Provence, algumas delas mundialmente conhecidas por seus produtos de luxo, possuem diversas linhas protagonizadas pela manteiga – de loções, cremes anti-idade e protetores solares a sabonetes, shampoos e condicionadores. A pequena semente marrom mobiliza compradores, exportadores e industriais. Na indústria de chocolates é também apreciada por apresentar uma textura cremosa e um ponto de fusão muito semelhante ao da manteiga de Cacau.
A crescente valorização dos cosméticos BIO, cujos processos de produção são sustentáveis, sem uso de agrotóxicos ou outros agentes químicos e que não são testados em animais, bem como o destaque das terapias naturais e o crescimento da consciência entre as consumidoras, são fatores que agregam valor comercial à manteiga de karité distribuída no mercado global. Eis um trunfo da indústria cosmética ( e de suas campanhas publicitárias), que além de venderem a label “produto natural”, ainda se beneficiam do perfil politicamente correto que vincula o produto à ajuda às cooperativas de mulheres produtoras, à solidariedade e ao empoderamento feminino. Outro fator a se tomar em perspectiva é o apelo do étnico/autêntico/exótico africano – ideia que remonta à ocupação colonial e que segue estrategicamente veiculada nos espaços europeus consumidores das culturas africanas.
COOPERAÇÃO OU CORRIDA PELO OURO?
Pode-se observar que a aliança das cooperativas de mulheres dos diversos espaços africanos produtores da manteiga de karité com grandes empresas estrangeiras possibilitou a melhoria de vida das mulheres e das condições de manufatura . A própria constituição das cooperativas, incentivadas por muitas dessas multinacionais, garante também a melhoria dos processos em termos de tecnologia e, evidentemente, da qualidade e possibilidade de certificação do produto. Isso vende e agrega valor de mercado. Entretanto, a relação desigual de poderes entre as mulheres produtoras e as grandes marcas estrangeiras revela problemas de base que afetam o lado mais frágil do jogo.
Atualmente organizações não governamentais e cooperativas atuam para regular as relações entre as mulheres produtoras e a indústria, assim como para fazer a produção tornar-se rentável para as mulheres, tanto para a obtenção de preços mais equilibrados quanto para a melhoria do processo produtivo através da mecanização e implementação de ferramentas tecnológicas. Mas quem ganha de fato com a exploração desse ouro? As mulheres africanas e as cooperativas recebem um tratamento justo ou o “fair trade” é apenas mais um atrativo para capitalizar essas grandes marcas que vendem não apenas a manteiga como componente de seus produtos mas comercializam também a ”cultura tradicional” a ser consumida pelo Ocidente ou o mundo não africano? O papel das mulheres, da coleta à distribuição regional da manteiga é crucial, assim como é importante a renda gerada para o sustento de suas famílias. Com o crescimento das exportações para suprir as demandas por produtos do mercado de beleza, a industrialização e a privatização reduzirão a importância dessas mulheres?
Créditos das imagens: Acervo África
Se no mundo do capital não há promessa de igualdade, a reflexão sobre a produção da karité e os protagonismos das mulheres africanas torna-se imperativa , para que não nos tornemos apenas reprodutoras/es do extrativismo predatório no continente.
Luciane Ramos-Silva
é antropóloga, artista e mobilizadora cultural. Compõe a equipe do Acervo África como gestora de projetos.