SOBRE ESCRITAS DO LADO DE LÁ

Selecionamos cinco obras de escritoras de diferentes contextos: Paulina Chiziane de Moçambique, Marguerite Abouet da Costa do Marfim, Scholastique Mukasonga de Ruanda, Léonora Miano dos Camarões e Chimamanda N. Adichie da Nigéria.

A literatura produzida por escritoras africanas, em feições tão múltiplas quanto o próprio continente, oferece bons caminhos para ampliarmos percepções sobre o mundo. Em comemoração ao dia mundial do livro, olhamos para a prateleira da biblioteca do Acervo África e selecionamos cinco obras de escritoras de diferentes contextos: Paulina Chiziane de Moçambique, Marguerite Abouet da Costa do Marfim, Scholastique Mukasonga de Ruanda, Léonora Miano dos Camarões e Chimamanda N. Adichie da Nigéria.

São escritas que revelam maneiras de entender histórias vividas e rememoradas. São críticas aos Estados Nação patriarcais e patrimoniais . São miradas sobre as fissuras geradas por guerras e as belezas de  cotidianos ordinários e prosaicos. As urgências presentes em cada narrativa devem gerar diferentes estados para quem lê: da dúvida à tensão; da alegria à dor. As obras ainda nos mostram como essas mulheres artistas sonham e compreendem seus universos sócio culturais e como a escrita é também a maneira como negociam seus pertencimentos .

Comecemos por Niketche – Uma história de poligamia , de Paulina Chiziane ( 1955 – ) , um romance que sobrevoa o cotidiano da vida das mulheres a partir de uma realidade: a poligamia masculina. A personagem Rami, ao se descobrir como parte de uma família polígama passa também a refletir sobre os papéis e dilemas como mulher naquela sociedade. A não conformidade da personagem, abre alas para a discussão das múltiplas camadas de subalternidade acumuladas nos corpos das mulheres africanas. Apesar dos processos de emancipação, há ainda inúmeras cargas. Paulina é uma contadora de estórias, como gosta de ser chamada. Sua escrita presencia diversas mudanças no seio social de Moçambique – da guerra civil à reconstrução ( a autora foi militante durante o processo de libertação nacional),  mas também discorre sobre o amor e os dilemas dos relacionamentos humanos. 

Aterrissamos na Nigéria, palco da obra Meio Sol Amarelo de  Chimamanda N. Adichie ( 1977 – ), um retrato particular da guerra de Biafra, conflito que durou três anos e cruzou armas das populações islamizadas do norte ( sobretudo haussás)  contras as cristãs do sul ( sobretudo  Igbo). Contando a história de um conflito pouco difundido na história oficial, exceto pelo cenário de fome e miséria que legou, Adichie desenha a trajetória conflituosa de duas irmãs gêmeas e o universo da guerra gravitando ao redor. Tramas emocionais, políticas, disparidades econômicas e ideologias compõem o romance. Explorando a falta de coerência entre a vida pública de homens considerados heróis e suas sujeiras e irresponsabilidades na vida privada, a autora nos mostra como as mulheres, sejam elas filhas ou esposas, experimentam todo aquele caos. Chimamanda, nascida depois da guerra de Biafra, pertence a uma nova geração de escritores/as em uma Nigéria pós-colonial interessada em abordar os dilemas e as possibilidades humanas. 

Aya de Youpougon, série de histórias em quadrinhos da marfinesa  Marguerite Abouet ( 1971 – ), desenha em cores vivas o cotidiano que viveu em sua adolescência no final dos anos 70 em Yop City, apelido do bairro popular de Youpougon localizado em Abidjan, na Costa do Marfim, num tempo em que o país vivia uma espécie de época de ouro com bons hospitais, escolas obrigatórias para todas as crianças, empregabilidade e todo um cenário de estabilidade muito diferente do que viviam alguns países da África do Oeste.  Paqueras, festas, amores e amizades são os elementos-chave das histórias que cria. Num país em crescimento, Aya, uma moça de 19 anos, tece sonhos e aventuras com suas duas melhores amigas, Bintou e Adjoua. 

Nossa Senhora do Nilo, romance de Scholastique Mukasonga (1952 – ), delineia uma  história atravessada pelo genocídio de 1994 em Ruanda, que deixou um legado cruel de milhares de mortos da etnia Tutsi. O espaço principal da narrativa é uma escola católica para meninas frequentada pela elite do país  ( majoritariamente da etnia Hutu). Na relação entre as alunas, transparecem as tensões geradas pelas hierarquias entre colônia e colonizador, dominantes e dominados, bem como os imaginários e relações de poder ainda vivos relacionados ao genocídio. Entretanto,  mais do que uma narrativa sobre o massacre, a autora lança luz sobre a experiência das jovens em sua adolescência e as relações sociais gritantes no micro-cosmos da escola. 

Em Contornos do dia que vem vindo, Léonora Miano ( 1973 – ), escritora de nacionalidade francesa nascida nos Camarões, escreve um romance ardido sobre a história de Musango, uma menina que é expulsa de casa após uma grande guerra em um país fictício chamado Mboasu. Acusada de ser a causa dos males de sua casa, a menina vaga pelo país e ao questionar seu destino cruel, resolve sair a procura de sua mãe em meio a um ambiente de  violências, superstições religiosas, injustiças e desigualdades. A realidade da vida amadurece essa jovem mulher assim como seus olhares para aquela África que a pariu e que oferece tantas  esperanças e decepções.

Essas mulheres escritoras trazem para o centro da narrativa pessoas, memórias, lugares, tempos históricos, discursos imaginados a seus modos e que nós leitoras e leitores poderemos re-imaginar.

(Luciane Ramos-Silva é antropóloga, artista e mobilizadora cultural. Compõe a equipe do Acervo África como gestora de projetos)